Falta estratégia, falta liderança


A rasteira de Bolsonaro no novo ministro da Saúde traduz a desorientação do governo para lidar com a pandemia. O custo, tanto em vidas humanas quanto econômico, será ainda maior O ministro da Saúde, Nelson Teich, durante entrevista coletiva nesta segunda-feira (11/5)
TV Brasil/Reprodução
O novo decreto em que o presidente Jair Bolsonaro incluiu, entre os 57 serviços considerados essenciais no Brasil, academias, barbearias e salões de beleza gerou no ministro da Saúde, Nelson Teich, um misto de espanto, supresa e desorientação. Questionado sobre o assunto na entrevista coletiva de ontem em Brasília, Teich deixou claro a todos que não havia sido consultado a respeito.
A rasteira de Bolsonaro em Teich obscureceu um fato mais importante: a apresentação das orientações a estados e prefeituras sobre o alívio às quarentenas e das diretrizes a adotar para o distanciamento social.
Sem trazer a público os detalhes do documento que afirma ter elaborado, o governo exibiu, em sete slides, os critérios que pretende usar para avaliar o risco das várias regiões numa escala de 0 a 20, com base em 11 indicadores. Questões sobre “contexto epidemiológico”, “capacidade instalada”, “mobilidade” e “capacidade de informação” servirão para calcular o risco, segundo cinco níveis, cada um deles com diretrizes distintas de distanciamento social.
É tudo o que foi divulgado. Não há, por ora, nenhum estudo científico, nenhuma fórmula de cálculo, nenhuma justificativa para os critérios. Se Bolsonaro tivesse um mínimo de noção sobre o que é necessário para resgatar a confiança e retomar atividades econômicas, era com isso que deveria se preocupar, não com academias, salões de beleza ou lobistas da indústria. Mais de 10 mil mortos não foram suficientes, contudo, para que ele e seus acólitos entendessem o sentido da palavra pandemia.
No resto do país, a situação não é muito melhor. Para tentar ampliar o respeito à quarentena, o prefeito de São Paulo, cidade até agora mais atingida pelo novo coronavírus, adotou um rodízio esdrúxulo, em que apenas metade dos carros pode circular. Resultado: transporte público apinhado, ruas lotadas, um ambiente mais favorável ao contágio.
No dia 15 de abril, publiquei uma sugestão de seis critérios essenciais para avaliar a retomada das atividades: crescimento nos casos, capacidade de atendimento, de testes, extensão da imunidade, estrutura de vigilância/isolamento e medidas preventivas de higiene. Num momento em que a dor continua a se espalhar, é imporante diagnosticar o que já temos e o que ainda falta para a retomada responsável:
Não temos queda consistente nas mortes e infecções;
Não temos equipamentos de proteção, respiradores mecânicos e UTIs suficientes em todo o país;
Não temos um programa de testes em massa, nem sequer indicadores confiáveis para medir a testagem;
Só ontem o IBGE anunciou uma pesquisa nacional para avaliar a extensão da imunidade por meio de exames sorológicos;
As estruturas de rastreamento e isolamento são erráticas, dependentes de iniciativas locais;
O mesmo vale para adoção obrigatória de máscaras e regras para aglomerações, centros de compras, supermercados, festas, bares e restaurantes.
Eis a situação. Retomar as atividades de modo responsável é evidentemente o desejo de qualquer brasileiro de bom senso. Abrir academias, barbearias ou indústrias sem avaliar riscos serve apenas para matar mais gente. É tão-somente um crime.
Pelo pouco que veio à tona, os critérios ainda desconhecidos do Ministério da Saúde parecem apontar numa direção correta. Países como França ou Alemanha também adotaram indicadores de risco semelhantes para orientar a reabertura. No Brasil, o melhor exemplo está no Rio Grande do Sul, cujo governo dividiu o estado em 20 regiões, monitoradas por também 11 indicadores (entre eles, número de novas mortes, casos diários e leitos de UTI disponíveis). A fórmula de cálculo para estabelecer os diferentes níveis de risco é pública e poderá ser acompanhada por cientistas.
É importante entender que não existe um manual a seguir para o alívio às restrições. Não há consenso científico formado sobre algo que a maioria dos países vive quase simultaneamente. Nada garante que qualquer um desses modelos funcione. Os governos francês e britânico têm sido torpedeados pelas estratégias adotadas. Mas ninguém tem condição de afirmar se darão certo.
Nesse quadro, o recomendado é uma abordagem cautelosa e gradual. Talvez seja melhor começar por grupos menos afetados pela Covid-19, como as crianças (hoje elas voltam às aulas na França). Será fundamental tornar obrigatório o uso de máscaras e adotar regras rígidas em espaços públicos. Será também preciso ter agilidade para corrigir rápido erros evidentes, como o abstruso rodízio paulistanos.
Agilidade, capacidade de adaptação e um sentido de cooperação serão essenciais. Mais que tudo, é preciso seguir as recomendações dos cientistas que estudam o assunto a fundo. Mesmo que não tragam certezas, a intuição deles tem mais valor que a dos ignorantes.
Nossa maior carência, contudo, continua a mesma desde o início da pandemia. Falta liderança nacional à altura. O choque de Bolsonaro com seu novo ministro da Saúde é apenas mais uma evidência de que ele não tem conhecimento nem compreensão do desafio. Ao que tudo indica, nem vontade – ou mesmo capacidade – para adquiri-los.
A consequência é previsível. O negacionismo populista, o discurso irresponsável para dividir e polarizar a sociedade, o descaso com a realidade aterradora trazida pela pandemia ainda custarão ao país dezenas de milhares de mortes, a perda de confiança e o pior naufrágio econômico da nossa história.